‘INTERMITÊNCIAS DA MORTE’
Aos oitenta anos, Saramago surpreende-nos. Que nos falasse da morte, até se compreendia… Confesso, porém, que não esperava que ele brincasse com o tema.
Já há muito nos deslumbráramos com a criatividade deste autor. Em diversos romances, a sua veia criadora já nos tinha revelado esta capacidade singular de engendrar enredos, aliando a história com a arte literária. Alguns textos causaram polémica. Estou a pensar no Evangelho segundo Jesus Cristo. Não foi fácil, os entendidos entenderem a inovação de um texto literário...
Todavia, o Ensaio sobre a Cegueira foi o livro que mais me surpreendeu. A questão social é apresentada de forma realista. Os governantes, impotentes, não encontram resposta adequada para a peste que vitima a população. Para a angústia, traumas, medos só encontram o isolamento e sequestro de todos os afectados. Será uma visão da sociedade portuguesa? O autor necessariamente não será um interventor, mas orienta a sua produção artística para a realidade que nos rodeia. O autor é um construtor!
Em INTERMITÊNCIAS DA MORTE Saramago volta a surpreender-nos. Parece que este romance não se enquadrava nas suas ambições literárias, mais recentes. Todavia aqui está. Para uma sociedade envelhecida, adiar a morte ou atrasá-la será a saída possível? E numa visão realista aparecem os cangalheiros. Defendem a sua actividade e não desistem sem encontrar alternativas. Ridículos? Não! Qualquer semelhança com a realidade portuguesa é simplesmente ocasional?...
A ironia acompanha o seu bom humor. Cria situações anómalas, caricaturais. O pintor recusa a carta que a morte lhe envia, o que lhe garante mais vida. Então, a própria morte o procura. Encontra-o a dormir, acompanhado do seu cão. Até a morte se enche de ternura e recebe o cão nos seus joelhos.
Romance extraordinário! Mostra-nos um autor que ainda tem muito para nos legar.
Novembro 2005 – J. Soares