‘INTERMITÊNCIAS DA MORTE’
Aos oitenta anos, Saramago surpreende-nos. Que nos falasse da morte, até se compreendia… Confesso, porém, que não esperava que ele brincasse com o tema.
Já há muito nos deslumbráramos com a criatividade deste autor. Em diversos romances, a sua veia criadora já nos tinha revelado esta capacidade singular de engendrar enredos, aliando a história com a arte literária. Alguns textos causaram polémica. Estou a pensar no Evangelho segundo Jesus Cristo. Não foi fácil, os entendidos entenderem a inovação de um texto literário...
Todavia, o Ensaio sobre a Cegueira foi o livro que mais me surpreendeu. A questão social é apresentada de forma realista. Os governantes, impotentes, não encontram resposta adequada para a peste que vitima a população. Para a angústia, traumas, medos só encontram o isolamento e sequestro de todos os afectados. Será uma visão da sociedade portuguesa? O autor necessariamente não será um interventor, mas orienta a sua produção artística para a realidade que nos rodeia. O autor é um construtor!
Em INTERMITÊNCIAS DA MORTE Saramago volta a surpreender-nos. Parece que este romance não se enquadrava nas suas ambições literárias, mais recentes. Todavia aqui está. Para uma sociedade envelhecida, adiar a morte ou atrasá-la será a saída possível? E numa visão realista aparecem os cangalheiros. Defendem a sua actividade e não desistem sem encontrar alternativas. Ridículos? Não! Qualquer semelhança com a realidade portuguesa é simplesmente ocasional?...
A ironia acompanha o seu bom humor. Cria situações anómalas, caricaturais. O pintor recusa a carta que a morte lhe envia, o que lhe garante mais vida. Então, a própria morte o procura. Encontra-o a dormir, acompanhado do seu cão. Até a morte se enche de ternura e recebe o cão nos seus joelhos.
Romance extraordinário! Mostra-nos um autor que ainda tem muito para nos legar.
Novembro 2005 – J. Soares
1 Comments:
A Fernando Pessoa,
no 70.º aniversário da sua morte
O nosso prémio Nobel – José Saramago, em 1984, publicou um livro que intitulou “O ano da morte de Ricardo Reis”. Sabemos que Ricardo Reis é um heterónimo de Pessoa.
De facto, há setenta anos, que se completam precisamente no dia 30,em Lisboa, na cama de um hospital, completamente ignorado dos portugueses, apenas com algum amigo perto, morria Fernando Pessoa.
Pelos vistos, passaram-se setenta anos… e continuamos a ignorá-lo!
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. (F.P.)
José Silva – Porto
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